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Florbela... Linda Florbela...

"E se um dia hei de ser pó, cinza e nada/ Que seja a minha noite uma alvorada,/ Que me saiba perder... pra me encontrar..."

O Homem de Vidro


Hoje pela manhã enquanto dirigia pelo atordoante transito da Cidade Maravilhosa, ouvia música e pensava. Ia pensando que dirigir me provoca as mesmas sensações dos seis anos, quando aprendi a andar de bicicleta sem rodas auxiliares e sem mãos de pai equilibrando no banco. É a sensação de liberdade tomando o pensamento. Por falar novamente em pensamento, eis aí um grande problema: pensamentos-mágicos me acompanham. Diz-se de pensamentos-mágicos, segundo o dicionário de Bar da Língua Portuguesa Januzzi Teixeira: (Subst. Composto) 1- Aquilo que passa pela mente e não se pode controlar; 2- Pensamento geralmente indesejado sobre uma pessoa ou alguma coisa que você goste numa determinada situação. Ex: Em frente a minha casa mora uma senhora solitária. Para seguir o clichê, pode-se dizer que ela é uma senhora muito simpática e muito bondosa. A tal senhora é tão meiga e tão doce que até enjoa – Bom, este é o primeiro exemplo de pensamento-mágico dentro deste período da oração que agora organizo.
Mas a tal senhora, (dona de pelo menos uma dezena de cachorros – informação irrelevante para o que desejo contar realmente), hoje pela manhã veio puxar conversa quando nos esbarramos na fila da padaria. Começou com aquele papo de quem não tem nada pra dizer, mas que por motivos de carência maior prefere vencer a barreira do desassuntamento, buscando, aparentemente, uma temática comum entre as duas partes. Minha experiência em filas (e creio que a da maioria das pessoas) diz que nestes casos o assuntante classifica todos os seres como meteorologistas e começa com alguma observação sobre o tempo. No caso da minha vizinha: - Menina! Você viu a ventania desta madrugada? Nossa! Parecia que o mundo ia acabar! Cheguei a sair pra ver se minhas telhas estavam bem presas! Também, não dava mesmo pra dormir porque todos os cachorros da vizinhança ficaram bastante agitados. A sorte é que sou uma pessoa bastante religiosa: acendi uma vela, me peguei com meu santinho e fui rezando e bla blá blá blá... blá.... blá... ... .... blá.... b... lá.... á... á... .... ..... á .... ....... ........ á.
            Enquanto a vizinha falava, a voz dela foi sumindo, sumindo... sumiiiindo.... eu de repente pensei: - Cala a boca! O que me interessa o vento, o cachorro, a ceroula bege e furada no varal? Não! Não eram os cachorros da vizinhança latindo: eram os seus cachorros! Aliás: vá cuidar deles e.... Quando dei conta era minha vez de fazer o pedido. Aquele pensamento passou tão repentinamente como veio. Eu acho que sorri gentilmente para a Senhorinha Dona dos Cães que Latiram à Noite Por Causa do Vendaval, concordei com sua última frase e ofereci-lhe minha vez em tempo de ouvi-la dizer um grande “Obrigada e Vá Com Deus, Minha Filha. Se Precisar de Alguma Coisa Pode me Chamar...”
Mas é claro que o que me estimulou a escrever até aqui não foi, o que deve ser a misteriosa vida sexual da senhorinha simpática e bondosa que tenho no portão de frente (se bem que não posso negar que morro de curiosidade sobre a vida sexual das pessoas, sobretudo daquelas que são muito inteligentes, solitárias ou atarefadas, ou uma mistura de todas estas coisas) e, além do mais, ia mesmo falando de pensamentos, e, nem só de pensamentos-mágicos vive meu cérebro, mas também de todo devaneio tosco que surge através de uma cena vista atrás do vidro do carro que agora dirijo. Acho que é por isso que sinto falta de andar de ônibus às vezes. Fico mais livre para devanear quando sou carona ou passageira. Sinto-me realmente livre para pensar o que quiser, para inventar histórias para as personagens que passam em minha frente, como essa Senhorinha de Calça Xadrez que agora vejo.
São sete e meia da manhã. Está mais frio do que o habitual no mês de maio e mesmo assim Dona Iolanda (o nome que dei a Senhorinha da Calça Xadrez) já se levantou, se perfumou, vestiu seu mediano corpo já fragilizado pelo tempo com uma blusa marrom, sobrepondo um casaco de linha marfim; pôs também a calça em xadrez vermelho e mostrada combinando com um sapatinho de camurça avermelhado. Seus cabelos lisos e brancos estavam presos por dois grampinhos nas laterais, acima das orelhas, fazendo com que o corte Chanel marcasse ainda mais o rosto fino e suas maçãs ossudas. Ia pela rua elegantemente, segurando uma pequena bolsa presa ao antebraço esquerdo e arrastando um carrinho de feira pela mão direita.
Pude observar Dona Iolanda em tantos detalhes porque o transito da Praça Seca estava completamente parado, então, restava-me apenas observar, ouvir música, ser paciente e pensar. Alguma coisa em Dona Iolanda me precipitava. Havia algo em suas rugas me fazendo lembrar de mim aos setenta ou oitenta anos de idade. Só quando Dona Iolanda enfim venceu a travessia da larga rua rumo à praça, só quando passou bem em frente ao carro, só quando olhou por um segundo ou dois em meus olhos através daquele vidro esverdeado pude ver o que era.  Quando aquele olhar tremulo me atravessou, vi que o que me fazia ver a Senhora da Calça Xadrez e do Cabelo Chanel era o halo perdido. Era o olhar lânguido daqueles que vivem um grande amor na vida (e um grande amor só pode ser se for perdido, doído, amargurado).
Dona Iolanda tem um casamento feliz há 53 anos. Teve dez filhos, dezessete netos e quatro bisnetos. Dois de seus filhos faleceram e seu marido, o Senhor Lúcio, está bastante adoentado – complicações da velhice, minha menina. Depois dos oitenta fica difícil encontrar alguma simplicidade na vida! A simplicidade é para os jovens, querida. Foi o que Iolanda me disse a respeito do Sr. Lúcio naquela manhã. Mas eu sabia (de algum modo a Velha Xadrez me fez saber) que embora houvesse um amor semissecular entre ela e seu marido, aquele não era o maior amor de sua vida. Era com certeza, o maior em tempo de carteira assinada, mas (não tenho dúvidas), ela o trocaria (novamente) pelo pequeno tempo de experiência ao lado Hélio (mas desta vez trocaria à valer; trocaria mais que beijos e carícias ardentes: trocaria a vida segura e feliz oferecida por seu marido bancário por uma aventura de frio, sede e fome ao lado do vendedor, andarilho hippie Hélio).
A verdade é que no universo feminino não se reconhece como Grande Amor a tranquilidade da vida compartilhada, a alegria do cotidiano descortinado estação à estação nem tampouco a companhia na transposição das pequenas frustrações. Uma outra verdade é que agora meus pensamentos me fazem injusta. Talvez esta não seja uma verdade apenas feminina. Esta deve ser uma verdade do gênero humano. Deve ser bem verdade que a grande maioria de nós, entre homens e mulheres, reconhece para si como grandes amores apenas aquelas histórias que envolvem aventura, coragem, renúncias, turbulências e muitas sortes de tragédias. Tudo isso eu vi em Dona Iolanda e sei que, de tudo o que escrevi até aqui, esta é a maior mentira. Sei bem que vi atrás daquele vidro. Sei que não foi a velhinha que ia à feira.
Aquele olhar atravessou o vidro e me fuzilou não com historietas inventadas sobre qualquer desconhecido. Aquele olhar me consumiu aquela manhã por que era eu ali, indo à feira. Aquela senhora que parecia incapaz de cometer qualquer grande loucura na vida, aquela mulher de olhar tão morno, havia sim vivido um grande amor. Muito provavelmente não foi com Hélio, nem Lúcio, nem Joaquim. Mas é certo que ela viveu sua linda e inesquecível história de amor. Só as velhinhas lânguidas ou amarguradas viveram grandes histórias de amor – pelo menos só elas viveram as grandes histórias não vividas.
Isso tudo fui capaz de saber e somente estas percepções bastaram para que respeitasse aquela mulher da maneira como se respeitam aqueles que sobreviveram com honradez às grandes intempéries da vida. Haverá talvez um outro olhar sobre Iolanda. Haverá quem diga que se acovardou, que foi egoísta e que recebeu da vida o pagamento exato pela falta de coragem que infligiu a si mesmo; certamente dirão alguns que esta mulher nada mais é que uma farsa, fingindo felicidade ao lado do Sr. Hélio, coitado, tão inocente na ignorância dos amores escondidos por sua mulher. A mim cabe apenas admirá-la. Fico pensando: e quando for eu daquele lado do vidro? E quando for meu olhar a fuzilar outro alguém, numa manhã outonal qualquer? E quando, silenciosamente, contar para algum desconhecido que me apaixonei perdidamente diversas vezes? Saberão (por certo) que meu coração sempre foi um malandro incorrigível e que um dia, sem mais por que, sentiu a estranha necessidade (também) de acovardar-se. Encontrou uma inexplicável paz na inércia do amor eterno – daquele amor que não se reconhece como grande amor, como já teorizei anteriormente, mas que tem lá suas belezas dignas de serem cantadas em sonetos e no que gosto de chamar de “as mais belas fábulas para a juventude”: histórias cheias de ensinamento moral para uma vida duradoura, produtiva, estruturada e feliz. Por falar nisso, acho a felicidade um saco a maior parte do tempo. A felicidade é entediante! Penso que ela deve ser uma utopia e não um lugar aonde chegar realmente. Deve ser uma eterna procura: deve ser o desconforto e a ânsia que esta busca nos impõe. Para que ser feliz? O que a gente faz depois que é feliz? Aprende a tocar harpa e enche o mundo com nossos acordes felizes e sacais?
Lembro-me da declaração de meu pai assim que saí do altar: agora posso morrer! Tive a felicidade esperada de ver minha filha se casando. Estou muito feliz! Fiz tudo o que precisava fazer na vida. Não é que ele tem razão? Depois da felicidade completa, resta-nos morrer! Fazer o que nesta terra, minha gente, se não há nada mais pelo que buscar, pelo que esperar? Não gosto de me sentir plena em felicidade, porque quero viver. Paradoxalmente, pretendo empregar cada minuto precioso na agonia que se coloca na tal busca pela felicidade, que no universo feminino, significa-se muitas vezes pelas paixões delirantes que nos entorpecem vida afora.
Então estava eu morrendo de tédio na parte da história em que eu era feliz para sempre. Era um bocejo só, minha vida. Trabalho, casa, marido, filhos, almoços de domingo, despertador na segunda e tudo como uma vida feliz e segura regra. Tanta felicidade me deixou irrecuperavelmente infeliz e um dia eu bati a porta: tranquei toda felicidade em casa e fui para a tristeza (tão contente) do mundo. Comecei de novo: nova casa, novo desamor, novos lugares, novas companhias e, o mais esperado: uma nova busca pela felicidade. Sim, sim, sim. Sou uma insatisfeita! Eternamente insaciável. A mim aguarda o inferno, tamanhos são meus pecados. Talvez seja bem cabível: nunca soube dizer não aos meus apelos e por isso nunca me tornei uma pessoa melhor. Vou vivendo como posso, como sinto, como gosto e como o diabo quer.
Precisava me apaixonar novamente. Não poderia mais passear pela vida como quem vai pelo paraíso. Necessitava da roda gigante dos apaixonados, onde uma hora se vê tudo tão do alto e no minuto seguinte, já se está perto do chão. Foi aí que encontrei o Homem de vidro. Era de vidro mesmo, assim como lhes estou contando. Na verdade não lhes estou contando coisa alguma sobre mim. Venho toda esta narrativa, me escondendo atrás de um vidro, das histórias que digo de outros e de toda esta conversa sobre as infelicidades porque em verdade, não estou pronta para falar sobre este homem. As mãos estão frias, as idéias estáticas e, confesso, acendi um cigarro. Há meses me libertei deste vício, mas a simples lembrança de tudo o que foi associada a esta maldita necessidade de escrever trouxeram-me de volta a nicotina. Tudo bem. Seguirei sem culpas. Amanhã recomeço a abstinência. Por hora, acendo mais um cigarro, observo a fumaça e tento expelir de mim as espinhosas palavras que me perfuram as solas dos pés. Como poderia eu descrever um amor inventado de tal maneira que se torne tão real e intenso como fora vivido? Parca literatura esta minha, meu Deus! Faz-me envergonhar diante de todos os mestres que leio.            Busco consolo pensando que, talvez, a própria falta de palavras possa virginalmente ser relacionada a vergonha que lá no fundo, bem no fundo, sinto por ter-me deixado levar por um amor tão anunciadamente frágil, tão visivelmente degradável, tão mais dissolúvel que esta fumaça que agora é devolvida ao mundo por meus pulmões.
O homem e suas palavras eram fascinantes, estonteantes. Conhecíamos bem as palavras um do outro. Nossas palavras eram o que nos apaixonava. Passávamos horas em frente ao computador nos inventando, tecendo nossas personagens, tão perfeitas e imortais quanto aquelas contidas nas Mil e Uma Noites. Fui, indubitavelmente, sua Sherazade contando-lhe histórias que, durante um curto período, nos salvou da sobrevida entediante dos fatos comuns do cotidiano – que também tem lá suas belezas, mas que agora não me cabem como narrativa. Mas ele era um Homem de Vidro e deveria ter permanecido assim. Eu acaso posso ter sido também sua Mulher de Vidro, vá saber, e talvez, devesse também ter permanecido assim. Algumas coisas são para ser imutáveis, ou posso eu querer que o barro deixe ou tarde em ser barro? Tivesse eu sofrido menos, acaso me aconselhasse antes com Alberto Caeiro e não quisesse mudar a natureza das coisas...

Mas, ignorando conselhos, quis encontrá-lo. Quis transformá-lo em homem, sem a transparência do vidro e fui ao seu encontro. (Agora, além do cigarro, parece-me necessário uma pausa para café. A cafeína também tem lá seus mistérios curandeiros para palavras doentes). Resta-lhes saber apenas que só eu fui. Vi, sozinha, a linda lua cheia refletir sobre a Baía de Guanabara e também a vi descer majestosa sobre aquelas águas. Nenhum único aceno. Nenhuma única palavra. Nem pelo computador. Nunca mais. Ao amanhecer, o Homem de Vidro já havia se quebrado, mas os cacos eram todos meus. Nunca soube o que houve, mas fico cá com minhas suposições. Imagino que ele tenha se apaixonado somente pela escritora, enquanto eu já buscava a realidade presente na carne, no osso e em tudo mais que a humanidade nos impõe. Este é o fim. Mas se ao final de cada amor for necessário pesar cada um num jogo de erros, bem medido e bem pesado, a mim não coube nem homem real, nem homem de vidro: fico sozinha com minhas interrogações e faço como Dona Iolanda: retorno ao casamento feliz e previsível, que é a mea culpa que me resta. 
(imagem retirada de: reconditoregistro.blogspot.com -)