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Florbela... Linda Florbela...

"E se um dia hei de ser pó, cinza e nada/ Que seja a minha noite uma alvorada,/ Que me saiba perder... pra me encontrar..."

Tão ocos quanto um ovo furado


Uma das imagens de minha infância mais presentes na memória até hoje são as viagens de férias que fazíamos à casa de minha avó Dila. Morava no interiorzão do Rio e arrastava num jeito mineiro a fala e as delícias culinárias, de modo que, quando íamos subindo a ladeira de paralelepípedos irregulares, meu pai já começava a salivar: Hum... o ovinho cozido da Dona Dila! Oba!
Quando chegávamos enfim, depois de  cinco ou seis horas de viagem, Dona Dila estava lá, com a água fervendo, abraçando a todos e chorando de felicidade. Mal despejávamos as tralhas e ela punha seu filhinho sentado, mergulhava o ovo na água fervendo por um minuto, retirava-o, fazia um pequeno furo numa das extremidades, punha um pouquinho de sal, entregava-o ao meu pai com um palito de dente e ordenava: Bebe que você tá muito magrinho, meu filho. Precisa se alimentar, pra dar conta dos filhos.
Papai então mexia o conteúdo do ovo com o palitinho e bebia aquilo tudo, com uma felicidade que nunca fui capaz de entender. Segundos depois estava o ovo oco, oco, abandonado sobre a bancada da pia de cozinha. Eu lavava a casquinha e pegava para desenhar. Achava bonito, bonito. Depois ficava exibindo como uma obra de arte que eu criara com os restos que os outros achavam que não servia para mais nada.
Hoje acordei pensando nisso porque andei acumulando umas inquietações sobre a minha geração. Pobre e perdida geração, sem título e sem causa! Meu Deus! Eu mesma fico chocada por declarar uma coisa dessas! parece uma posição tão retrógrada e preconceituosa! Estamos num tempo em que não buscamos outra coisa senão comemorar incessantemente a conquista da velha juventude à liberdade de expressão. E Comemoramos nossa liberdade (vejam vocês) sem grandes expressões, no marasmo das monossílabas proferidas em nossas extraordinárias reuniões a céu aberto, regadas a muita cerveja, Absolut, Red isso e aquilo, Vodka,Vodka e mais Vodka (isso para não entrar no mérito dos alucinógenos da moda...) 
Imaginem que esta semana na faculdade o assunto dos estudantes revolucionários era a mobilização de um Foranãoseiquem. O logo da campanha utilizava o "F" do facebook como marca registrada da nossa infinita criatividade e do local de onde tiramos os instrumentos políticos para a luta que conclamamos! Oras, não me incomodo que já comecem os julgamentos pelo o que estou escrevendo. Há de se correr algum risco quando se expõe uma opinião, mas vamos lá, deixem que eu explique. Não vejo nada de errado em frequentar uma (ou várias) rede social. É parte do nosso tempo (Graças aos céus!). É uma ferramenta e tanta, além de ser também uma ótima fonte de distração e entretenimento, tudo reunido num local bem definido da internet. Também não há problema algum em manisfestar insatisfação contra o poder estabelecido. (Dessa segunda parte, na verdade, gosto muito). Então o que poderia ser, meu Deus do Céu?
O que fico me perguntando é o que teria acontecido se Tche Guevara tivesse passado metade de seus dias, todos os dias, jogando bola no campinho de futebol de Rosário. Como ele chamaria seus amigos para a luta? O que ele saberia efetivamente sobre Perón? Está certo. Voltemos à nossa realidade, mas é preciso se libertar do passado e parar de glorificar os estudantes de 64 e parar de falar deste período como o tempo ouro de nossa jovialidade. Também eram jovens. Agiam como jovens. Haveria também entre eles a turma dos pseudos revolucionários, reunidos em bares, esbravejando apoio ao Vietnã e fazendo careta para os Estados Unidos. Mas e o restante? O que faziam?
Creio que encontravam seus heróis e buscavam ideais bem definidos. Mais que isso. Eram heróis de si mesmo. Então chegamos ao ponto máximo de minha angústia matinal:  Por onde andará o Super-man de minha geração? Joana D'arc? Dart Vader! Até Jesus já foi descruscificado! Dirão alguns que tudo isso é bom e faz sentido. Não há UM entre nós, porque todos precismos ser. Particularmente sinto falta. E é estranho porque é uma falta de um não-viver. Onde estão os tabloides escritos com nossa empáfia jovial? Megafones mudos. O que fizemos com a filosofia, a política e a literatura? Onde é que as enterramos? Em que quintal? 
Mas queremos lutar, brigar, fazer revolução. Vamos então à luta, tão ocos quanto o que sobrava do ovo oferecido por minha avó ao meu pai... casca, fina e frágil casca. Meu pai não é assim tão velho e também nada fez de grandioso em sua juventude. Contudo, cresceu numa época em que aprendeu a beber o conteúdo, a se fortalecer dele. Ao que parece, eu e minha geração, ao contrário, acostumamo-nos a pintar a casca do que foi consumido por outros até a última gota e exibi-la como se fôssemos nós os bebedores de seu conteúdo. Minha geração é tão oca quanto um ovo furado. E eu também nada faço a respeito. Apenas coloco-me a parte. Escrevo, vez em quando, meia dúzia de palavras e eis aí minha grande revolução!  Que coisa, meu Deus! Que coisa!

Desengonçada





Era uma menina cheia de coisas inúteis.
As inutilidades tomavam-lhe o corpo:
Vivia com a cabeça nas nuvens,
De muito pensar em balões,
Princesas,
Gnomo e paçoca.

Tinha os dedos indicadores roxos
(de tanto futucar a terra pra achar minhoca)
Tinha as palmas das mãos fundas
- de tanto aparar vento,
de tanto passar-anel.

Tinha as pernas compridas
(de tanto pular sobre as Pirâmides do Egito,
de tanto apostar corrida,
de muito pular elástico
de tanto envolver o mundo.

Tinhas uns pés gigantes:
de tanto correr descalça
nos cumes dos montes
Atrás doutros Pés Grandes.

Suas orelhas incharam
de tanto ouvir passarinho cantar,
de muito escutar a vitrola do vizinho,
de muito ouvir o mar
e de tanto puxão de orelha
que levava por suas inutilidades sem fim.

Seu pescoço esticou como o da girafa
de tanto olhar para ontem,
de tanto procurar estrelas cadentes,
e de tanto olhar por baixo das pernas
só para enxergar tudo diferente.

Seus olhos esbugalharam
de tanto procurar formiga em chão preto,
de tanto olhar para as nuvens em dia de chuva,
de tanto procurar a lua em dias de sol;


De tanto levar susto
com bronca de adulto
( para “tomar modos de gente”)
um dia a menina soltou
um grande arroto e
Saiu por aí arrotando as idéias
que tinha na cabeça e
as coisas que seus dedos tinham tocado:
Aí a menina aprendeu a falar.

De tanto ouvir sermão para parar de arrotar
e de tanto arrotar pelas broncas que levava,
a menina começou a prestar atenção em seus arrotos.
Percebeu as letras.
Juntou palavras:
E a menina aprendeu a ler.

E de tanto levar sacolejo de adulto
pra “ter mais educação” e
parar de arrotar por aí,
um dia a menina sentou.
Encolheu as pernas compridas,
mexeu as pontas dos pés e plantou-os no chão.
Com a palma da mão
(funda de tanto aparar vento),
afofou a terra.
Inclinou o grande pescoço para baixo,
sentiu seu estômago embrulhar,
abriu a boca e mais uma vez, arrotou.
Abriu ainda mais os olhos.
Observou as letras e
com a ponta do dedo indicador
rabiscou na terra:
DESENGONÇADA.
A menina aprendeu a escrever.

E de tanto encolher as pernas,
de tanto ajeitar areia,
de tanto sentir seu estômago embrulhar,
de tanto arrotar inutilidades,
de tanto observar o que arrotava,
de tanto rabiscar seus arrotos,
a menina virou POETA.

A valsa de Eros e Psiquê.



Adormecida sob o vento de agosto, aconchegava-se entre edredons e travesseiros. Em seu quarto ouvia-se apenas o zunido do vento frio passando por entre as frestas das velhas janelas de madeira, corroídas pelo tempo e pela maresia.
Ao longe, a música débil das ondas quebrando na areia da praia e o tilintar do “capta sonhos” na varanda. Dentro do quarto, a quietude do corpo banhado pelo óleo de Pimenta Rosa, absorto e relaxado, envolto pelas rendas e sedas da lingerie branca, há um tempo esquecida.
Passos suaves anunciam a aproximação do calor de outro corpo, que traz movimentos singelos sobre a cama e mãos que retiram o edredom, e que encontram pernas, barriga e seios...
Por enquanto, não há palavras. Também não há mais lençóis: há apenas bocas e línguas, criadoras de uma atmosfera “caliente” para corpos vivos e suados.
A respiração forte (quase ofegante) busca o controle temporário de si sobre o prazer.
...

A mão emaranhada em seus cabelos.
A boca umedecendo todo o pescoço.
A visão de suas costas nuas.
O cheiro da Pimenta Rosa.
As unhas “cravadas” em suas costas molhadas.
O êxtase de senti-la deslizar sua língua por seus mamilos rijos pelo prazer...
Descontrole.
Arrepios.
...

Eles não sabem ainda, mas dançam.
Dançam uma valsa improvisada, sem amarras e marcações.
Os movimentos dos corpos apenas seguem o ritmo da música das ondas.
Agora, a quebra do silêncio.
O ir e vir das ondas...
Sussurros;
Ruídos;
Promessas que jamais serão cumpridas.
O tilintar do capta sonhos na varanda;
A espuma branca na areia.
Gemidos;
Corpos realizados, soltos sobre a cama.
...
  O quarto completamente escurecido pela chegada da grande noite permitia apenas o reconhecimento tátil do corpo daquele que a tivera em seus braços de maneira tão ardente naqueles instantes de amor.
          Ele adormeceu aconchegado em seus seios ainda quentes de paixão, e ela movimentou cuidadosamente sua cabeça para o travesseiro, e se levantou. Buscava a luz, pois desejava vê-lo.
            Ainda nua, caminhou até a janela intencionando abri-la para que a claridade da lua cheia iluminasse o rosto daquele que a fizera tão bem. Já não havia mais vento, nem sons vindos da praia, nem ruídos no quarto: apenas o quase silêncio de sua própria respiração.
            Embevecida pelos fortes ventos do mês de agosto, aconchegada entre lençóis, edredons e delírios, abriu sonolentamente os olhos. Pela janela entreaberta, avistou o capta sonhos na varanda. Ouviu o ruído do vento e o som do arrebentar das ondas nos rochedos da praia. Sentiu o vento frio em seus cabelos e adormeceu uma vez mais...

Memória Feminina

Do outro lado do vidro o pensamento parece correr mais do que os carros da BR 116. Pensamento desassossegado que parte não sei de onde e pretende chegar a conclusão alguma. No fim tenho certeza: são apenas coisas do coração da mulher. Os homens que me perdoem, mas, frequentemente, penso que eles não são capazes de se perder assim. Não podem voar através dos vidros dos carros. Não sabem desassossegar.

(Para não ser muito injusta, até acredito que os  homens só são capazes de alçar voo quando muito apaixonados, principalmente no auge de uma dor de amor.)

Tenho muitos amigos do sexo oposto. Já acompanhei muitos de seus sofrimentos de amor. É verdade: sofrem muito. Choram; bebem; ligam milhares de vezes só para ouvir a voz da mulher desejada e depois desligam, sem soltar um único suspiro apaixonado sequer. Desfalecem de amor por incríveis  72 horas! Depois? Vão se aquietando e... partem para outra (ou em alguns casos, outras). Simplesmente esquecem de toda aquela dor! E lá vão eles amar, amar e amar insandecidamente outras tantas vezes!

Admiro (de verdade) essa característica masculina. Ao que percebo, homens não se perdem nas rodovias dois anos depois de uma linda (?) história de amor, pensando em todas coisas que não foram e em tantas outras que poderiam ter sido. Admiro o fato dos homens não se preocuparem se os atuais parceiros de suas ex- quaisquer-coisas são parecidas com a She-Ra ou com o Munn- Rá... Para eles, as coisas simplesmente passam!

Sim, sim... Talvez alguns deles se lembrem de vez em quando daquela menina especial, daquele beijo, daquela cena e... principalmente: daquele sexo. Homens não lembram (com tanta frequencia) daquela roupa, daquela frase ou daquela música que tocava naquele dia em que transamos loucamente naquele carro que você pegou emprestado com seu primo. Essa é uma memória tipicamente feminina.

Mulher lembra até do que não viveu: lembra daquele dia em que você viria me buscar para irmos ao Municipal? O Teatro estava lindo aquele dia... Acabara de receber novas luzes. Era uma comédia ótima! Nós morremos de rir e depois de uma longa gargalhada quase compassada, quando houve aquela pequena pausa entre uma anedota e outra, nos olhamos com uma cumplicidade infinda. Não houve mais nada. Não ouvi mais ninguém. Só nossos olhos sorriram . Eu me lembro bem daquela noite...

São tantas as noites para lembrar! Quero declarar que amo solenemente aquele que me ama! Aqueles que por ventura lerem estas linhas, são se enganem que há em mim alguma dor por um amor perdido! Isso não há! Sou fiel ao homem que amo! O diabo é que minha memória feminina às vezes me trai, e eu vejo (quase clandestinamente) fantasmas através dos vidros do carro que cortam as Brs pelas queis trafego...

Leila, Leila! Me faça pecar!

Aprendi em criança a rejeitar os pecados e seguir tentando a santidade. De todas as tarefas que recebi até hoje, rumar para a santidade foi a mais árdua, chata, sem sentido, sem graça e insossa de todas. Decidi muito cedo assumir o halo que me serpenteia: nasci pecadora e pretendo assim morrer. Pecar me parece indispensável, já que minha escrita é a encarnação de meus pecados, e , ao mesmo tempo, minha confissão e absorvição.

É certo que há alguns pecados que tento evitar diariamente, sobretudo para manter alguma constância ou organização no pensamento: lanço fora (ou tento) a indolência. Ela fica ali, ao meu lado, diariamente enquanto penso - e penso como se estivesse escrevendo: isso faz de mim uma lunática tarada tomada pela vaidade (pecado que me fez sair da indolência do fim da tarde de sábado e escrever. Escrever desordenadamente sobre os pecados da escrita)

Minhas indignações sobre a vida vão se colocando em cada ponto e exclamação! Sigo pecando! Lá se vão representadas em personagens a maior das luxúrias, sem o menor pudor ou precaução; às vezes meus pecados não aparecem explícitos nos textos que escrevo, mas acontecem durante a escrita. Sim! Sinto muita inveja às vezes! Penso em Clarisse Lispector, em Martha Medeiros, em Elisa Lucinda, Ana Maria Machado... Que belas palavras têm todas estas mulheres! Como escrevem bem! Como são merecedoras de todo seu legado!

Este blog é um pecado: reflexo da minha preguiça. Esvaziado de mim e cheio de mim. Esvaziado pela inconstância de postagens e cheio na intensidade de meus sentimentos. Hoje é dia de preenchimento, de lotação e de transborde. Hoje este blog está lotado de um pecado muito bonito e esperançoso. Hoje este blog ( e esta blogueira) está muito vaidoso.

Pela primeira vez em muitos anos escrevendo percebi de verdade que minha escrita pode encontrar ideias, desejos, sonhos, carinhos e pecados de outros, que não aqueles meus amigos e irmãos de caminhada ( e que estes não me acusem de avarenta, por favor!) Hoje eu quero ser escritora quando crescer!

Quero escrever para Leila, que nem me conhece e que gosta de mim.
Quero dizer para Leila que ela me fez vaidosa; quero que ela saiba que esta vaidade me impulsiona e me acrescenta muitos elementos à escrita; quero dizer à ela que quando os originais do meu (nosso) livro estiverem prontos, enviarei a ela em primeira mão; quero que ela fique sabendo que haverá no livro uma dedicatória mais ou menos assim: "Para Leila, que me fez pecar e encarnar muitas destas palavras..."
Quero escrever para Leila e, escrevendo para ela, eu pretendo encontrar também as Marias, as Natálias, as Carolinas, Verônicas, Paulos, Flávios, Josés, Andreias, Lucianas, as Anas e as Claras - estas duas últimas, com uma certa urgência bastante peculiar...

Necessidade


E se eu precisar sair sem dizer adeus, deixe que eu vá sem dramas! Não me chame, não espere que eu olhe para trás, não me grite! Não me faça gritar! Não pense que n'algum momento eu abandonarei as malas na esquina e correrei de volta aos teus braços, ansiando teu colo e teus afagos. Não! Esta não sou eu.

Buscarei outro destino, ainda que seguindo a mesma estrada. Contudo, não importa: a estrada é a mesma, mas a maneira de seguir é outra, é tênue, é solitária. Não te apavores com última frase porque a solidão não me maltrata: me é necessária e na maioria das vezes, feliz. E quando a solidão for um fardo (se um dia assim acontecer), buscarei outros ombros, outros conselhos, outras companhias, desejos, amizades.

Falando sobre isso ainda ontem, uma amiga me disse admirar porque sou bem resolvida e prática. Sabe aquela coisa de perceber que é hora de mudar e tentar sem medo? Ela disse que eu sou assim. Bom. Não disse que não sou, mas sei que não sou.
A determinação (e de certo modo a anunciação) de mudança não extingue por si os medos, as angústias. A percepção de que é fim de linha num determinado ponto do trajeto não torna menos dolorosa a decisão de seguir por outras ruas, vielas e túneis. Tudo isso não me torna mais forte (nem mais fraca, admito). Todas essas coisas só são pelo próprio instinto animal de sobrevivência. E todo o resto é só o que sobra.

Mas se um dia fosse você a sair sem dizer adeus numa tarde de domingo?
E se fosse você, sem escolha, sem rumo, sem olhar para trás, sem abandonar as pesadas malas na esquina e sem recorrer ao meu colo por mais uma noite? Mas e se você me pedisse companhia para a última embriaguês, para a última discussão filosófica sobre Deus e as sacanagens que não entendemos? Se me pedisse pra dirigir em alta velocidade até aquela praia tão escondida aos pés do Cristo? E se me pedisse para fazermos sexo ardente e perigosamente pelas ruas do Rio de Janeiro? E se me chamasse para ir à casa de todas aquelas patricinhas chatas e infantis e dizer à elas todas as nossas verdades chocantes sobre elas e o mundo? E se quisesse um ar de loucura em seu último dia?

Todas essas coisas eu faria.

Se você me disser que vai partir e que não há mais nada que possamos fazer, eu largo minhas malas e fico mais um pouco.Você sabe que sim. Eu sigo calada ao teu lado. Posso ser a sua solidão, se é assim que te agradas. E quando minha solidão também te for insuportável, quando houver só desespero, abro os braços pra você, te cuido, te afago e te invento um deus novinho em folha para renovar as esperanças.

Tão jovem que és, anuncia que é chegada a dolorosa hora de partir... Lido mal com as idas, com as perdas... sabes disso. Preferiria ir antes e realizar com lágrimas nos olhos toda aquela cena do primeiro parágrafo. Mas não sou assim. Sou antes de tudo aquela que precisa esperar; aquela que entende que a amizade e o amor só podem ser pelo o exercício de ficar, quando tudo o que mais se quer, é partir...

Ele escolheu o livro pela capa

Chegou esta manhã em minhas mãos um pequeno embrulho misterioso e suas justificativas: “era para ter sido entregue ano passado! Que vergonha, Meu Deus! (...) Por favor, não me repare o embrulho e é só uma lembrancinha...”

É claro que eu reparava em muita coisa. Nas férias aprendi o ofício de reparar.  Aprendi com Elisa. A Lucinda mesmo! Aprendi um pouquinho todo dia, com suas páginas folheadas e com seus links compartilhados. Este aprendizado anda me facilitando os dias! Reparei de início que a pessoa que me entregava o presente, aguardara por 15 preciosos minutos para conseguir fazê-lo, já que eu precisava atender algumas mães e acalantar alguns bebês... coisas do ofício. Reparei no cuidado com o qual o embrulho foi feito. Era apenas um saco plástico com uma propaganda de uma loja e com um desenho de flor, mas havia sido esticado e cuidadosamente preso com uma fita adesiva na borda. Reparei que o embrulho tinha cheiro. Cheirei. Reparei que seus olhos perguntavam: “E aí? Não vai abrir?” Respondi rapidamente com as pontas dos dedos e libertei aquele cheiro bom de carinho e cuidado.

Ele estava lá. Lindo. Cuidadinho... Veio mais uma advertência: “ele escolheu o livro pela capa, eu nem sei do que se trata esse livro, eu nunca o li, mas ele me garantiu que cê ia gostar...”. “Ele”, a quem ela se referiu, acaba de completar 4 anos de idade e ainda não sabe ler nem escrever essa leitura toda cheia de gueri-gueri que a gente inventa como só! Ele ainda não sabe determinados códigos, mas sabe tantas outras coisas!  Ele sabe ler o que acontece em seu redor, ele fotografa mnemônicamente  pequenos detalhes e, o melhor de tudo: ele escolhe, fala e aposta em suas escolhas.

Lá estava “O livro escolhido pela capa”. Pequeno. Capa dura. Vermelho. Letras douradas e garrafais no centro, contando para o mundo quem é o autor da obra, anunciada abaixo, em letras menores, mas não menos importante que as anteriores. Lá estava o grande “G” de Graciliano Ramos. O Mesmo “G” do “Guilherme”, do “Gorro” da histórias do Pequeno Polegar, que é o mesmo “G” de “Garoto”, de “Gorila”, de “Goiaba” e que “é igual aquela letra da Chapeuzinho, só que não tem o negócio pra dentro, né, tia?”

Enquanto meus dedos percorriam a capa – e eu ainda nem tinha lido a dedicatória – acho que eu pensava: Como ele sabia? Quando eu comentei que esse livro... Justamente esse livro...? Eu devo ter falado... mas eu não falaria que... como? Como? Devo ter franzido a testa porque na hora a mãe dele perguntou: Tudo bem? O que foi? O livro é ruim? Eu mais que depressa disse que a escolha havia sido mais que certa, que caíra como sombra fresca em dia de sol, mas que não podia dizer se o livro era ruim, porque também nunca o havia lido. Então ela me abraçou forte e se foi. Eu fiquei ali, embasbacada pela escolha.

Quando lhe dei aula, periodicamente lhe contava história. Não só para ele, mas para toda turma. Eventualmente escolhia contos clássicos e os mostrava. Escolhia ao que me parecia bem próximo das primeiras edições: capas duras, ilustrações bem detalhadas, letras douradas ou pratas. Apresentava o material, a editora, o responsável pela coletânea, tradução e ilustração. Falava do que me encantava naqueles materiais e pedia que eles tocassem, cheirassem, compartilhassem suas impressões... ele fazia todas essas coisas com particular alegria e eu não fazia a menor ideia que isso pudesse ser importante. Eu só fazia.

Comecei com essa besteirinha quando era criança, quando comecei a freqüentar a biblioteca da escola, quando tinha 8 anos, acho. Ainda lembro do cheiro e da disposição dos corredores. Biblioteca simples, com poucos exemplares. Passava todo meu recreio lá. Lia muito devagar, então as vezes ficava de castigo por ter “esquecido da hora no recreio”. Foi então que me contaram que eu podia fazer ficha e levar alguns livros para casa. Não parei mais: pegava um. Lia. Devolvia. Outro. Mais outro e outro. Assim fui gostando de sonhar com as palavras dos outros e a rir e a chorar com elas. Gostava tanto que passava as noites lendo, coisa que começou a incomodar os adultos lá de casa.

Quando tinha 12 anos a vida tratou de virar uma página e me fez começar um novo capítulo noutro lugar. Antes da mudança, ganhei de uma bibliotecária alguns livros que não serviam mais para a biblioteca. Entre eles estavam uns clássicos da Coleção Vagalume – como “O menino de asas”, “Zezinho, o dono da Porquinha Preta”, e “Um defunto ouve rádio” – e uns títulos até então desconhecidos para mim, como “Nossa Senhora de Paris” de Vitor Hugo, “Memória Póstuma de Brás Cubas”, de Machado e... o livro escolhido pela capa! O livro da capa vermelha e letras garrafais douradas...  “A terra dos meninos pelados”, de Graciliano Ramos.

Agora acabo de ler as peripécias de Raimundo! Que leitura agradável! Me fez lembrar Manoel de Barros. Não conhecia este Graciliano menino, encantado, de olhos de duas cores. Não me deixaram conhecer. Ao que parece, “A terra dos meninos pelados” sugeria um nome um tanto erótico... coisas que certamente eram proibidas para uma menina de 12 anos... Adultos também julgam livros pela capa, mas acontece que, às vezes, dizem que sabem ler – vai saber?

 Mas porque raios só lêem a capa? Porque não lêem com os outros sentidos? Tato? Olfato? Porque não degustam as gravuras ou ao menos as primeiras páginas dos banquetes que as histórias oferecem? Porque se aborrecem com suas vivências eróticas e despejam sobre os títulos alheios suas libidos?

Aquele que me escolheu o livro pela capa, em tese, não conhece nada do código lingüístico, mas em nada me parece analfabeto. Quem lê e escreve com a perfeição dos pontos e das vírgulas, algumas vezes, não consegue perceber a beleza, a poesia e o mistério que estão adormecidos  nos seios das palavras e sabe-se lá por que cargas d’águas, fazem voar agosto afora, páginas e mais páginas de Nossa Senhora de Paris.
Será que Victor Hugo é dado às mesmas safadezas de Graciliano? Será que sofre da mesma perversão? Não me demoro a descobrir. E que os adultos lá de casa não me ouçam, não me leiam e não me encontrem em companhia de Nelson Rodrigues, Anais Nin, Henry Müller ou Ariel Dorfmam. E que as crianças continuem analfabetas, enquanto a compreensão assim permitir...