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Florbela... Linda Florbela...

"E se um dia hei de ser pó, cinza e nada/ Que seja a minha noite uma alvorada,/ Que me saiba perder... pra me encontrar..."

Desengonçada





Era uma menina cheia de coisas inúteis.
As inutilidades tomavam-lhe o corpo:
Vivia com a cabeça nas nuvens,
De muito pensar em balões,
Princesas,
Gnomo e paçoca.

Tinha os dedos indicadores roxos
(de tanto futucar a terra pra achar minhoca)
Tinha as palmas das mãos fundas
- de tanto aparar vento,
de tanto passar-anel.

Tinha as pernas compridas
(de tanto pular sobre as Pirâmides do Egito,
de tanto apostar corrida,
de muito pular elástico
de tanto envolver o mundo.

Tinhas uns pés gigantes:
de tanto correr descalça
nos cumes dos montes
Atrás doutros Pés Grandes.

Suas orelhas incharam
de tanto ouvir passarinho cantar,
de muito escutar a vitrola do vizinho,
de muito ouvir o mar
e de tanto puxão de orelha
que levava por suas inutilidades sem fim.

Seu pescoço esticou como o da girafa
de tanto olhar para ontem,
de tanto procurar estrelas cadentes,
e de tanto olhar por baixo das pernas
só para enxergar tudo diferente.

Seus olhos esbugalharam
de tanto procurar formiga em chão preto,
de tanto olhar para as nuvens em dia de chuva,
de tanto procurar a lua em dias de sol;


De tanto levar susto
com bronca de adulto
( para “tomar modos de gente”)
um dia a menina soltou
um grande arroto e
Saiu por aí arrotando as idéias
que tinha na cabeça e
as coisas que seus dedos tinham tocado:
Aí a menina aprendeu a falar.

De tanto ouvir sermão para parar de arrotar
e de tanto arrotar pelas broncas que levava,
a menina começou a prestar atenção em seus arrotos.
Percebeu as letras.
Juntou palavras:
E a menina aprendeu a ler.

E de tanto levar sacolejo de adulto
pra “ter mais educação” e
parar de arrotar por aí,
um dia a menina sentou.
Encolheu as pernas compridas,
mexeu as pontas dos pés e plantou-os no chão.
Com a palma da mão
(funda de tanto aparar vento),
afofou a terra.
Inclinou o grande pescoço para baixo,
sentiu seu estômago embrulhar,
abriu a boca e mais uma vez, arrotou.
Abriu ainda mais os olhos.
Observou as letras e
com a ponta do dedo indicador
rabiscou na terra:
DESENGONÇADA.
A menina aprendeu a escrever.

E de tanto encolher as pernas,
de tanto ajeitar areia,
de tanto sentir seu estômago embrulhar,
de tanto arrotar inutilidades,
de tanto observar o que arrotava,
de tanto rabiscar seus arrotos,
a menina virou POETA.

A valsa de Eros e Psiquê.



Adormecida sob o vento de agosto, aconchegava-se entre edredons e travesseiros. Em seu quarto ouvia-se apenas o zunido do vento frio passando por entre as frestas das velhas janelas de madeira, corroídas pelo tempo e pela maresia.
Ao longe, a música débil das ondas quebrando na areia da praia e o tilintar do “capta sonhos” na varanda. Dentro do quarto, a quietude do corpo banhado pelo óleo de Pimenta Rosa, absorto e relaxado, envolto pelas rendas e sedas da lingerie branca, há um tempo esquecida.
Passos suaves anunciam a aproximação do calor de outro corpo, que traz movimentos singelos sobre a cama e mãos que retiram o edredom, e que encontram pernas, barriga e seios...
Por enquanto, não há palavras. Também não há mais lençóis: há apenas bocas e línguas, criadoras de uma atmosfera “caliente” para corpos vivos e suados.
A respiração forte (quase ofegante) busca o controle temporário de si sobre o prazer.
...

A mão emaranhada em seus cabelos.
A boca umedecendo todo o pescoço.
A visão de suas costas nuas.
O cheiro da Pimenta Rosa.
As unhas “cravadas” em suas costas molhadas.
O êxtase de senti-la deslizar sua língua por seus mamilos rijos pelo prazer...
Descontrole.
Arrepios.
...

Eles não sabem ainda, mas dançam.
Dançam uma valsa improvisada, sem amarras e marcações.
Os movimentos dos corpos apenas seguem o ritmo da música das ondas.
Agora, a quebra do silêncio.
O ir e vir das ondas...
Sussurros;
Ruídos;
Promessas que jamais serão cumpridas.
O tilintar do capta sonhos na varanda;
A espuma branca na areia.
Gemidos;
Corpos realizados, soltos sobre a cama.
...
  O quarto completamente escurecido pela chegada da grande noite permitia apenas o reconhecimento tátil do corpo daquele que a tivera em seus braços de maneira tão ardente naqueles instantes de amor.
          Ele adormeceu aconchegado em seus seios ainda quentes de paixão, e ela movimentou cuidadosamente sua cabeça para o travesseiro, e se levantou. Buscava a luz, pois desejava vê-lo.
            Ainda nua, caminhou até a janela intencionando abri-la para que a claridade da lua cheia iluminasse o rosto daquele que a fizera tão bem. Já não havia mais vento, nem sons vindos da praia, nem ruídos no quarto: apenas o quase silêncio de sua própria respiração.
            Embevecida pelos fortes ventos do mês de agosto, aconchegada entre lençóis, edredons e delírios, abriu sonolentamente os olhos. Pela janela entreaberta, avistou o capta sonhos na varanda. Ouviu o ruído do vento e o som do arrebentar das ondas nos rochedos da praia. Sentiu o vento frio em seus cabelos e adormeceu uma vez mais...