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Florbela... Linda Florbela...

"E se um dia hei de ser pó, cinza e nada/ Que seja a minha noite uma alvorada,/ Que me saiba perder... pra me encontrar..."

Ele escolheu o livro pela capa

Chegou esta manhã em minhas mãos um pequeno embrulho misterioso e suas justificativas: “era para ter sido entregue ano passado! Que vergonha, Meu Deus! (...) Por favor, não me repare o embrulho e é só uma lembrancinha...”

É claro que eu reparava em muita coisa. Nas férias aprendi o ofício de reparar.  Aprendi com Elisa. A Lucinda mesmo! Aprendi um pouquinho todo dia, com suas páginas folheadas e com seus links compartilhados. Este aprendizado anda me facilitando os dias! Reparei de início que a pessoa que me entregava o presente, aguardara por 15 preciosos minutos para conseguir fazê-lo, já que eu precisava atender algumas mães e acalantar alguns bebês... coisas do ofício. Reparei no cuidado com o qual o embrulho foi feito. Era apenas um saco plástico com uma propaganda de uma loja e com um desenho de flor, mas havia sido esticado e cuidadosamente preso com uma fita adesiva na borda. Reparei que o embrulho tinha cheiro. Cheirei. Reparei que seus olhos perguntavam: “E aí? Não vai abrir?” Respondi rapidamente com as pontas dos dedos e libertei aquele cheiro bom de carinho e cuidado.

Ele estava lá. Lindo. Cuidadinho... Veio mais uma advertência: “ele escolheu o livro pela capa, eu nem sei do que se trata esse livro, eu nunca o li, mas ele me garantiu que cê ia gostar...”. “Ele”, a quem ela se referiu, acaba de completar 4 anos de idade e ainda não sabe ler nem escrever essa leitura toda cheia de gueri-gueri que a gente inventa como só! Ele ainda não sabe determinados códigos, mas sabe tantas outras coisas!  Ele sabe ler o que acontece em seu redor, ele fotografa mnemônicamente  pequenos detalhes e, o melhor de tudo: ele escolhe, fala e aposta em suas escolhas.

Lá estava “O livro escolhido pela capa”. Pequeno. Capa dura. Vermelho. Letras douradas e garrafais no centro, contando para o mundo quem é o autor da obra, anunciada abaixo, em letras menores, mas não menos importante que as anteriores. Lá estava o grande “G” de Graciliano Ramos. O Mesmo “G” do “Guilherme”, do “Gorro” da histórias do Pequeno Polegar, que é o mesmo “G” de “Garoto”, de “Gorila”, de “Goiaba” e que “é igual aquela letra da Chapeuzinho, só que não tem o negócio pra dentro, né, tia?”

Enquanto meus dedos percorriam a capa – e eu ainda nem tinha lido a dedicatória – acho que eu pensava: Como ele sabia? Quando eu comentei que esse livro... Justamente esse livro...? Eu devo ter falado... mas eu não falaria que... como? Como? Devo ter franzido a testa porque na hora a mãe dele perguntou: Tudo bem? O que foi? O livro é ruim? Eu mais que depressa disse que a escolha havia sido mais que certa, que caíra como sombra fresca em dia de sol, mas que não podia dizer se o livro era ruim, porque também nunca o havia lido. Então ela me abraçou forte e se foi. Eu fiquei ali, embasbacada pela escolha.

Quando lhe dei aula, periodicamente lhe contava história. Não só para ele, mas para toda turma. Eventualmente escolhia contos clássicos e os mostrava. Escolhia ao que me parecia bem próximo das primeiras edições: capas duras, ilustrações bem detalhadas, letras douradas ou pratas. Apresentava o material, a editora, o responsável pela coletânea, tradução e ilustração. Falava do que me encantava naqueles materiais e pedia que eles tocassem, cheirassem, compartilhassem suas impressões... ele fazia todas essas coisas com particular alegria e eu não fazia a menor ideia que isso pudesse ser importante. Eu só fazia.

Comecei com essa besteirinha quando era criança, quando comecei a freqüentar a biblioteca da escola, quando tinha 8 anos, acho. Ainda lembro do cheiro e da disposição dos corredores. Biblioteca simples, com poucos exemplares. Passava todo meu recreio lá. Lia muito devagar, então as vezes ficava de castigo por ter “esquecido da hora no recreio”. Foi então que me contaram que eu podia fazer ficha e levar alguns livros para casa. Não parei mais: pegava um. Lia. Devolvia. Outro. Mais outro e outro. Assim fui gostando de sonhar com as palavras dos outros e a rir e a chorar com elas. Gostava tanto que passava as noites lendo, coisa que começou a incomodar os adultos lá de casa.

Quando tinha 12 anos a vida tratou de virar uma página e me fez começar um novo capítulo noutro lugar. Antes da mudança, ganhei de uma bibliotecária alguns livros que não serviam mais para a biblioteca. Entre eles estavam uns clássicos da Coleção Vagalume – como “O menino de asas”, “Zezinho, o dono da Porquinha Preta”, e “Um defunto ouve rádio” – e uns títulos até então desconhecidos para mim, como “Nossa Senhora de Paris” de Vitor Hugo, “Memória Póstuma de Brás Cubas”, de Machado e... o livro escolhido pela capa! O livro da capa vermelha e letras garrafais douradas...  “A terra dos meninos pelados”, de Graciliano Ramos.

Agora acabo de ler as peripécias de Raimundo! Que leitura agradável! Me fez lembrar Manoel de Barros. Não conhecia este Graciliano menino, encantado, de olhos de duas cores. Não me deixaram conhecer. Ao que parece, “A terra dos meninos pelados” sugeria um nome um tanto erótico... coisas que certamente eram proibidas para uma menina de 12 anos... Adultos também julgam livros pela capa, mas acontece que, às vezes, dizem que sabem ler – vai saber?

 Mas porque raios só lêem a capa? Porque não lêem com os outros sentidos? Tato? Olfato? Porque não degustam as gravuras ou ao menos as primeiras páginas dos banquetes que as histórias oferecem? Porque se aborrecem com suas vivências eróticas e despejam sobre os títulos alheios suas libidos?

Aquele que me escolheu o livro pela capa, em tese, não conhece nada do código lingüístico, mas em nada me parece analfabeto. Quem lê e escreve com a perfeição dos pontos e das vírgulas, algumas vezes, não consegue perceber a beleza, a poesia e o mistério que estão adormecidos  nos seios das palavras e sabe-se lá por que cargas d’águas, fazem voar agosto afora, páginas e mais páginas de Nossa Senhora de Paris.
Será que Victor Hugo é dado às mesmas safadezas de Graciliano? Será que sofre da mesma perversão? Não me demoro a descobrir. E que os adultos lá de casa não me ouçam, não me leiam e não me encontrem em companhia de Nelson Rodrigues, Anais Nin, Henry Müller ou Ariel Dorfmam. E que as crianças continuem analfabetas, enquanto a compreensão assim permitir...