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Florbela... Linda Florbela...

"E se um dia hei de ser pó, cinza e nada/ Que seja a minha noite uma alvorada,/ Que me saiba perder... pra me encontrar..."

Mas eu não aprendi a bordar...

Me trouxe suas linhas
(tão finas, coloridas e fortes)
Me indicou caminhos,
ensinou pontos,
me deu fazenda:
Mas eu?
Não aprendi a bordar.

Li sua imagem,
Guardei em mim seus traços,
caretas e sorrisos.
Percorri também suas lágrimas
e até delineei seu corpo
(intencionando um retrato
ponto-cruz)
Mas eu...
Não aprendi a bordar.

Me fiz pelo avesso,
Furei o dedo.
Sangrei,
sentir doer
mas ainda assim
tentei te marcar em mim...
Mas não.
Não.
Eu não sei bordar.

Te faltou paciência
aos meus erros infantis.
Você cansou.

Guardei a linha e a agulha.

Nunca mais os teus tecidos.
Nunca mais os teus traços.
Sem mais tentativas.
Mas eu?
Eu que não aprendi a bordar,
não sei como desfazer teus nós...

Anônimo

Muito bem. O Adeus chegou silencioso. Ficou ali, a minha frente, debruçado sobre minhas mãos como uma mulata de janela com seus olhos fixos nos caminhantes rua acima, ladeira abaixo, sobrado adentro.

Muito bem. O Adeus não me fez nenhum gesto, não se identificou, mas esteve ali. Talvez tenha chegado mais cedo do que pude perceber. Talvez tenha ficado algum tempo misturado aos balões de gás da festa bonita que a paixão fez. Talvez. Talvez. Não sei.

Muito bem. O Adeus me fez sentir mais madura hoje. Não lhe neguei um aperto de mãos, não lhe desviei o olhar e também não lhe menti minhas lágrimas. Estivemos ombro a ombro olhando o céu, sem palavras sobre o passado e sem recomendações frívolas ao futuro: devemos isto à nossa história.
Muito bem. O Adeus me arrancou o casaco, me levou os saltos e borrou meu batom. Eu deixei que o fizesse sem maiores resistências enquanto afagava meus cabelos úmidos pela luz da lua, desalinhados pelos beijos do vento.

Muito, muito bem! O Adeus cirandou comigo e me sorriu: nem anel de vidro que se quebre, nem amor pouco que se acabe. Rodamos, giramos, bailamos sem cantigas, nos atiramos no chão, nos entreolhamos...
Muito, muitíssimo bem! O Adeus percorreu sua mão em meu rosto, beijou minha testa e me fez sentir seu hálito quente. Durou só um instante, depois, atravessou-me a alma, tomou-me o fôlego e levou sua presença pra outro lugar.

Muito, muitíssimo bem! Enfim o Adeus me cerra os olhos e dele? Já não sei mais. Enfim esse Adeus – depois de todo caos, me esvazia, me oca, me cala só pra fazer lembrar que amor é contrato com cláusulas de letras miúdas na parte inferior da folha: em caso de desistência, ele chama o Adeus e com ele se vai.

Bem. Muito bem. Muitíssimo bem! Óh, Deus! É Adeus!

Bem. Muito bem.

Mas nem tão bem assim...

Chuvas


Um dia Deus me choveu tão forte que muito do que eu tinha inundou e se perdeu. Eu chovi na noite, quieta, muitas e muitas vezes.
Outra vez Deus me choveu em campos tão secos que assentou poeira de anos. Eu chovi agradecida,  calmamente com o tempo. 
Ontem Deus me choveu uma chuva tão fina e quente, tão suave e compassada, que eu chovi bailarina por entre as poças, sorrindo com a descoberta infantil de que Deus chove - e nos faz chover - nos piores e nos melhores dias.




Conselho:




Põe na caixa e guarda bem
A vida inteira que te resta
Conta o tempo que se tem,
E se esquive de toda festa.

Esqueça que a caixa existe!
Não faça planos que a inclua.
Não seja ela amor ou palpite
De paixão plena, feliz e nua.

Não! Não arrisques tua caixa,
Em jogos de amor e sedução.
Em volta dela, faça uma faixa:
Conteúdo selado pela razão.

Caso passe por ela, não a veja.
E quando a tocar, não a sinta.
Não lhe dê a quem te beija,
Não o faça a quem te minta.

Proteja tua caixinha do amor,
 - Este sentimento tão infame.
E o tempo resvalando, sem dor
Sem um que te odeie ou ame.

Mas agora ouça com atenção.
Escute o que minha avó dizia:
Conselho bom não tem razão,
É feito folha seca em ventania.

Quanta bobagem, minha gente!
Isso lá são conselhos que se dê?
Faz festa pro amor e ama contente!
Convida a vida, pra ela acontecer!

Clara Rohem.

Pausa para café.


O cheiro de café que vem da cozinha quase faz de minha tenda um lar. Cheguei a “nova casa” colocando apenas uma esteira no chão da sala, encontrando um lugar mais ou menos propício para as caixas de livros, enfiando cozinha adentro uma geladeira velha, um fogão cansado, um armário espaçoso para acomodar uma faca, quatro copos de plástico, seis pratos (dos quais um eu perdi numa feijoada) e alguns pouquíssimos talheres. O pequeno quarto até que ficou espaçoso para a cama, o guarda-roupas e a tábua de passar – que fica em pé feito um soldado da guarda inglesa, atrás da porta, sem emitir a menor expressão de coisa nenhuma, apenas impondo sua presença no ambiente.

No período da mudança fiz aquela seleção que sempre fazemos: isto quero, disso preciso, disso nem tanto, daquilo não mesmo.  E foi assim que ficaram pra trás uma TV, um guarda-roupa, uma cômoda, uma mesa de seis lugares e um sofá de canto gigante. Neste ínterim, as chuvas que castigaram o Rio de Janeiro fizeram-me desprender ainda mais de algumas coisas: e lá se foram um monte de quinquilharias úteis para cozinhar para amigos e pessoas queridas; roupas de cama, mesa e banho; agasalhos, sapatos e até bibelôs.

Deixei tudo o que era demais. Eu estava cheia. Transbordavam coisas das quais não precisava minimamente! Lembro-me de ter encontrado entre meus pertences um descaroçador de azeitonas. Deus! Pra quê eu precisava daquilo? Uma dezena de caixas porta-não-sei-quê, cada qual mais vazia que a outra... e os manuais que nunca li de eletroeletrônicos que há muito não existiam mais? Uma infinidade deles! Quanta coisa guardei sem nem me dar conta que estava guardando! De repente me dei conta que não eram só os objetos, mas as histórias que contavam (ou que silenciavam), o percurso, as sensações por trás de cada um deles que me enchiam. Era quase exatamente o que Drummond dizia sobre jogar fora tudo o que nos prende a um mundo de coisas tristes (quase exatamente porque quase nada era triste: muita coisa era apenas desnecessária para a nova fase e talvez o tivesse sido também – imperceptivelmente – para o estágio anterior).

De Drummond a Mogli e seu amigo urso (aquele do filme da Disney), fui cantarolando: “Necessário, somente o necessário, o necessário nessa vida é demais...” e fiquei 1) espaçosa, tanto quanto meu armário de cozinha, 2) comercial antigo do carro Fox: pequena por fora espaçosa por dentro. Conflituosa que sou comecei a perceber que preciso de alguns entulhos pra desalinhar as coisas de vez em quando. Não sou feita para as organizações. Elas me entediam profundamente. Ta! É legal saber onde está exatamente tudo, mas acho muito bom também quando em procura desesperada por um objeto, encontramos alguma coisa que perdemos há muito. Pode ser um bilhete, um brinco ou uma graninha no bolso d’alguma calça. Tanto faz! A gente sempre fica feliz.

Comecei a reavaliar o que é realmente (des) necessário. E olha eu atrás de novas quinquilharias só para poder cozinhar para amigos e pessoas queridas (mas o descaroçador de azeitonas continua fora da lista)! Olha eu atrás de edredon quentinho, toalhas felpudas e de bibelôs para acumular poeira pra eu limpar nos fins de semana e deixar a casa mais aconchegante!
E foi assim que hoje eu adquiri uma megasuperultrapower cafeteira! (que até então não tinha entrado na história, na minha história, porque até aqui nunca gostei de café!). De uma maneira meio doida, a lembrança do cheiro de café traz aconchego, acalanto, bem querer.

Assim que cheguei da rua, pus a menina pra funcionar. Liguei o computador e fiquei aqui pensando essas coisas todas. O pensamento original nem era esse: pensava nesse frio doido e doído; na voz que queria ter escutado este fim de semana e não ouvi; nas verdades explícitas no silêncio do toque do telefone... (é verdade... agora estou lembrando... queria escrever sobre as coisas que os silêncios contam...) Mas aí a cafeteira começou a borbulhar e o telefone tocou dando ótimas notícias de meu pai e minha irmã, lá no litoral. Não era a voz que tanto esperei, mas eram vozes aromáticas. Tinham cheiro, sabor e temperatura...

Quando o cheiro do café enfim invadiu o quarto, comecei a pensar e a escrever essas coisas, sem a menor importância acadêmica ou intelectual (ah, sim, porque escrever sobre as coisas que os silêncios contam poderia ter alguma imbricação com o tema de minha monografia... poderia... quem sabe?). Poderia ter rascunhado um monte de coisas sobre meu TCC ou sobre uns projetos, mas o cheiro de café que veio da cozinha... Ah! Só me fez pensar nesse monte de nadismo!

Acabo de colocar mais um pouco de café na xícara para fazer uma pausa e reler tudo o que rabisquei até aqui. ***************************************************

É melhor deixar que a pausa seja ponto final.



Vesguice


Quando criança levaram-me ao médico que era pra eu deixar de ser vesga. O médico disse que um tal de estrabismo punha defeito na maneira como eu via as coisas. Daí me obrigaram a aprender a ver. Era pra eu fazer força pra enxergar o mundo de maneira correta. Eu tinha de fazer muita força pra não ver as coisas multiplicadas, ou tortas, ou embaçadas, engraçadas, incertas. Comecei a fazer força, mas aí o mundo ficou sem graça demais. Desisti de forçar e fiquei vesga mesmo.

Um pouco de pimenta


Perder-me em teus olhos
Sedentos e convidativos
A longas galopadas
Madrugada afora
Para encontra-me depois
Impudorosamente,
Nas covas de teu sorriso,
Extasiado pelo almíscar,
Que impregna os corpos
Que segundos atrás galoparam
Voluptuosamente,
Entre selvas e retinas
Desejosas de amor.

Nós não somos supersticiosos...

O circo


Põe os olhos
No mundo.

Descortina
Retina
E lona de circo!

Nem picadeiro,
Nem palhaço:
Menina.

E lá vai ela
Toda enfeitada
Se exibindo
(Envergonhada)
Com medo
De cair

A Menina dos olhos
Com lágrimas
Trapezistas
Fotografa os cachos
Da criança tagarela
Que achando graça,
Se vai.

E no sorriso da criança,
Desconcentra-se.
Escorrega.

Agarra-se aos cílios
E faz das pálpebras
Contenção.

Num desencontro
De movimentos,
A Menina solta
As lágrimas
E as observa
Muito lentamente,
Encontrarem o chão.

Nem Menina
Nem trapézio:
Fecha as cortinas
E pelas retinas
Enxerga
(embaçado)
O mundo

* A  foto é da amiga trapezista (linda) Graci que, mundo afora, encanta com sua graciosidade e malabarismos. O poema é pra uma certa criança tagarela que sempre faz lágrimas trapezistas escorregarem da Menina de meus olhos...
É na boca que eu sinto o mundo
e na saliva que vou sorvendo a vida,
sentindo o doce da chuva,
o amargo do medo
e o acre da paixão.
A vida se faz na boca,
enquanto a língua cata pelos cantos
tudo o que lhe apetece e sobeja.
Com os lábios,
aprendo tudo o que lhe é suor
e percorro tuas fontes,
até que eu seja a saliva
e te umedeça
e te dissolva
e te seja riso,
suor e gozo.

De lá do Outro Lado...

Maçãs de outono

 
  
 


É bom ter amigos pra nos dizer essas coisas por email de vez em quando...
Obrigada, Verônica!
Temos um cesto cheio de "restos" de maçãs, não?
:)

Foi o moço que disse.


Um instante do seu olhar.
Não para mim, meu amor.
Para o céu,
azul, infinito,
com suas estrelas enormes.
Todas elas misteriosamente presas
ou içadas
ou soltas
ou dependuradas
por um fio de cabelo
ou por um clipse,
por um grampo
ou pela mão das virgens,
dos Santos,
ou de Deus.

Ouvi um moço dizer
que toda estrela um dia desce do céu
por um escorrego bonito
com sete cores
que aparece de tempos em tempos.
Ele disse também,
que quando a estrela fica cadente
ela está procurando o escorrego
doidinha pra chegar na terra e virar gente.

Disse pro moço
que minha vó diz o contrário:
Ela diz que toda estrela é gente que morre
e fica do céu iluminando a gente cá embaixo.
Mas, sinceramente, amor?
Achei o moço mais sabido...
Acho até que ele pode ter razão.
É que a gente não se acostuma a olhar as estrelas
e aí não as reconhece quando gente,
quando, depois de cadentes,
escorregam e tocam o chão.

Você sabe o que acontece, amor,
quando lá no céu as estrelas se juntam?
Eu também não sabia,
mas o moço disse que elas brincam
de roda e de desenhar.
A roda elas fazem em torno da lua
e os desenhos elas fazem por todo lugar:

Mas aí quando as estrelas descem...
Chuta só o que acontece?
(essa descoberta foi que me deixou intrigada...)
Elas continuam brincando!
Só que brincam de procurar outra estrela,
pra desenhar a vida numa estrada!

Me diz, amor:
Esse moço não é sabido?
Gosto de histórias e abri bem os ouvidos.
Hoje, já olhei bastante o céu.
Vai que tenha uma estrela me procurando
pra gente marcar o chão enquanto
pula amarelinha e brinca de passar anel?

Corre, meu amor!
Largue tudo o que estiver fazendo!
Vá depressa ver as estrelas!
Olhe lá. Bem longe, no infinito.
Memorize o brilho mais bonito...
Sente falta de alguma estrela?
Algum espaço é profundo breu?
Será que a estrela que te procura já desceu?
Não sei não, amor,
Mas pelo que o moço sabido disse,
pode ser que essa estrela seja eu.

Se você quiser brincar comigo,
Tenho um pedaço de giz no bolso
pra gente riscar o chão.
A gente pode pular corda, se você quiser.
Podemos jogar bola-de-gude,
ou até brincar de pirata!
(Te deixo ser o capitão.)
E quando a gente brincar de circo,
me deixa ser malabarista?
E se for de trem?
Posso ser a maquinista?

É que a gente não pode perder a oportunidade
de quando achar uma estrela, chamar pra brincar...
Deixo aqui o meu convite
de espalharmos muitos desenhos
por onde a gente passar.

O moço disse, amor,
que todo mundo tem que tentar
encontrar a estrela que é seu par.
E se depois não for assim,
Não tem que achar que é o fim.
É só o tempo de olhar pro céu,
de perceber as estrelas,
e de contemplar.
É só o tempo de contar até dez,
de chorar,
de sorrir
e de recomeçar.

Olha o Maaaaaaaaaaaatte!!!!



As ideias loucas estão em alta!
Os malucos, mais solidários que nunca!
Recebi um email de uma rádio carioca convidando a participar da promoção "Matte Leão Verão 2010". Concorrer a um coller cheio de matte é muito simples: É só fazer um vídeo gritando "OLHA O MATTE!" de um lugar bem inusitado. Eu que não tenho nada para fazer entre 00 e 05 horas, achei que seria bacana participar do tal Grito do Matte.
Falando sério: fazer esse vídeo será a maior graça!
A começar pelas ideias recebidas e pelas pessoas que dizem que irão participar.
A foto acima (enviada por um baiano lindo que está do outro lado do Atlântico, rs) ilustra bem os tipos de idéias recebidas, mas devo confessar que a mais inusitada de todas (vinda também do mesmo baiano), é irrealizável para nós: gritar de cima do Vulcão Teide. Fico só imaginando o eco: OLHA O MATTE,  MA TTE,     M A  T T E,      M  A   T      T       E .....
Cara! Esse seria o vídeo vencedor! rsrsrs
Mas...
Se não temos vulcão, temos faísca, fagulha e fogos, rs.
Entre as pessoas que querem participar, figuram:

1) Uma blogueira com o desejo secreto de ser Drag Queen;
2) Uma micareteira baixinha e risonha;
3) Uma professora aloprada, atriz de teatro e circo;
4) Uma Operadora de Seguros comediante.

Ai ai ai...
Será que esse vídeo sai?
De tudo, o que acho mais bacana é a disposição das pessoas de se envolverem, de participarem e de gargalharem apenas com a "possibilidade de". Cada um que para pra ouvir minhas bobagens e que de alguma forma contribue, opina, ou ajuda a realizar tais besteiras, está mesmo doando um pouco de si. Está sendo solidário e amigo. Amigos mesmo! Aqueles com os quais se compartilham as pequenas coisas importantes e idiotas que preenchem e esvaziam nossos dias, e isso, com certeza, é melhor que matte gelado na praia...

OLHA O MATTE!!!!!! rsrsrs

Mas é preciso cultivar maçãs...



O começo desta história é um clichê, mas é verdade. A gente passa a vida cuidando para que a macieira dê bons frutos e, no melhor do pomar, vem um e leva a maçã mais bonita, a mais suculenta, a mais vermelhinha de todas.

Planto minhas maçãs num lugar (aos olhos de muitos) quase infrutífero. O clima é sempre quente, não exatamente pelas condições geográficas, mas principalmente pela ação dos homens.Todos os dias, o mesmo trabalho: arar a terra, futucá-la com carinho, por as sementes, nutrí-las, aguá-las, observá-las com cuidado para espantar toda sorte de peste (e vou te dizer que peste é o que mais tem!).

É claro que não planto maçãs sozinha: o trabalho é árduo demais. É necessário muitas mãos para puxar o arado. A mão que mais afofa a terra junto a minha, hoje machucou-se. Eu também fiquei ferida por tabela (indignada, até!). Trabalhamos de sol-a-sol durante todo o ano (como a maioria das pessoas) e este era nosso momento de colheita e sombra!

Há algumas horas atrás meu telefone tocou. Do outro lado, a mão trêmula anunciava que o fruto de seu trabalho anual fora roubado com violência, estupidez e crueldade. A casa invadida, revólver na cabeça, todo terror psicológico imaginável e a ameaça quase concretizada de levarem um de seus bens mais preciosos: uma criança de um ano de idade.

Eu cá, perplexa, chateada, entristecida... puta da vida! (perdoem-me a expressão) Além de sentir tais coisas, apenas fico pensando e escrevendo para desanuviar as ideias. Penso tudo confuso, como as minhocas entrelaçadas dentro do pote antes da pescaria. Penso em nossos frutos. Não nos frutos comerciais que chegam às nossas contas mal e porcamente todo início de mês, mas sim no fruto preso a terra que aramos todos os dias naquele lugar dito infrutífero.

Em janeiro de 2008 fazia uma reflexão semelhante a esta, quando, após ouvir durante todo o ano de 2007 o apelo aflito de minha filha e de minha afilhada por duas "bonecas bebês" (dessas que deixam qualquer adulto com vontade de ser criança de novo), resolvi dar uma ajudinha a Papai Noel. Peguei parte de meu suuuuuuuuper décimo-terceiro e comprei as tais bonecas. O natal foi aquela felicidade!

Como de costume, fui passar uns dias no litoral. Levei comigo as meninas, algumas malas e as tais bonecas. Um mês inteiro tranquiiiiiiiiilo na praia. Nada tranquilo foi o retorno. Resolvi voltar de ônibus com as meninas e como o volume de bagagem era grande, deixei as coisas no litoral e pedi que minha tinha retornasse com toda bugigangada em seu carro - inclusive com as bonecas, o que aconteceria uma semana depois de meu retorno ao Rio.

Almoçávamos tranquilos naquele domingo quando o bendito telefone tocou (os telefones hoje em dia parecem até missionários do capeta: quase nunca tocam pra dizer que você ganhou na loto, ou que foi promovido, ou que passou no concurso, ou com o carinha da festa do dia anterior te ligando. Em compensação, é call-center, cobrança, e notícia ruim direto!) e minha tia falava (quase em desespero) que havia sido roubada ao chegar na Cidade Maravilhosa. Fora abordada por três lindos homens bem-vestidos (palavras dela) enquanto deixava uma amiga em casa.

Acabara de comprar o carro. Era aquele, sua maçã suculenta. Dentro "da maçã", muitas coisas que trazia do Litoral, além das chaves de casa e de alguns documentos (incluindo um que a identificava como da coorporação policial) e das minhas malas e bonecas das meninas!

Era de manhã e ela havia visto nitidamente o rosto daqueles que levaram sua maçã. Daquele dia só lembro de três preocupações:
1) O que aconteceria quando os homens vissem os documentos de minha tia?
2)Como contaria para as meninas que "as bonecas já eram"?
3) O que eu vestiria nos próximos meses?

A resposta para a primeira preocupação veio logo nos dias que se seguiram. Deixaram na DP em que minha tia trabalhava um envelope com todos seus documentos e com as chaves de sua casa. É óbvio que a tia tomou as providências cabíveis: fez o B.O, denunciou, investigou e trocou as fechaduras de sua casa. Nenhuma dessas medidas, no entanto, impediu que os caras ousassem. Dias depois, tentaram entrar em sua casa. Como não conseguiram fazê-lo com as chaves, tentaram de outra maneira. Tentaram convencer uma vizinha a deixá-los entrar no condomínio, dizendo que prestariam um "serviço" para a Fulana de Tal". Como os vizinhos sempre sabem das coisa, a vizinha disse-lhes que a Fulana de Tal não morava mais ali. Outras tentativas e resultou que a Fulana de Tal acabou por se mudar.

Parece que semanas depois (ou meses, não lembro mais porque tenho problemas espaço-temporais) a quadrilha foi presa, mas até isto acontecer, minha tia perdeu mais do que um cesto bonito de maçãs. Ela perdeu quase toda liberdade, inclusive a de plantar no mesmo pomar de sempre, já que foi necessário que ela fosse transferida da DP onde trabalhava há anos.

Aos poucos as coisas foram voltando àquela normalidade de sempre: Todos nós trabalhando nos pomares, voltando para casa exauridos, ouvindo nos noticiários as novas vítimas da velha violência (sempre tão atual e repaginada). O mais curioso é que, muitas vezes ao ouvirmos tais noticiários, nos sentimos seguros (ainda que momentaneamente) quando estamos atrás dos grandes portões e vigias do condomínio; atrás das 5 ou 9 portas com alarmes pelos cômodos da casa; atrás das janelas com suas grossas grades de ferro; frente ao pit-bull no quintal; ao segurança contratado pela vizinhança; pelas cercas eletrificadas sobre o muro e por toda parafernália de última geração no que diz respeito a segurança (dignas de filme de ficçãocientíficas!).

Longe dos noticiários (para o bem ou para o mal), a vida foi seguindo e as respostas aparecendo. As meninas entenderam o episódio a seu modo. Compreenderam que "um homem mau roubou as bonecas" e, entre tudo, um questionamento curioso: "mãe, pra quê um homem grande quer as nossas bonecas?". Minha mente idiota só soube elaborar a seguinte resposta: " Te respondo quando você me disser pra quê um homem grande e forte quer minhas roupas pequenas e femininas... Mas o certo mesmo é: quem sabe?"

Não sei bem o motivo pelo qual tem sempre alguém querendo nossas maçãs. Talvez tenha mesmo relação com o pomar onde cada um cresça e é cultivado, como uns creem; talvez só tenha que ver com o bicho-da-maça que cresce mais dentro de uns do que de outros...

O caso é que diante dessas e de tantas outras coisas do cotidiano, às vezes dá um certo desânimo em cultivar maçãs. É que a gente está sempre preparado para as maças bonitas e saudáveis. É difícil aceitar que algumas maçãs apodrecem ou caem do pé ainda verde. Nunca deixamos de ficar tristes quando roubam de nós frutos suculentos. Mas sabe o que é mais intrigante???

É que curiosamente nunca deixamos de acreditar no cultivo das maçãs. Haja o que houver, dia após dia, apanhamos novos saquinhos de sementes, um pouco d'água e adubo qualquer e vamos nós futucar a terra com carinho e cuidado, até que a macieira floresça por mais um outono. É preciso cultivar maçãs pelo simples objetivo de ver o cesto cheio a cada nova estação. Cuidemos das feridas nas mãos, coloquemos as luvas e vamos à terra!

É o que tem pr'essa temporada!